Hoje percebi
que na linha de produção ocorreu um grave erro. Erraram, não me colocaram um
coração de vidro... Saí da fábrica com defeito, mas ninguém se deu ao trabalho
de reclamar.
Perambulei
pelas ruas, senti no peito algo sangrar, na boca provei do gosto amargo das
dores do mundo... Na noite passada
percebi que quando você partiu fui eu quem morreu...
Pergunto-me
se depois daquele dia, algum outro dia vivi? Fugi... Vivo em fuga... E diante
de tantos corações de vidro, é o caminho que devo seguir... Quando ameaça sangrar
é preciso apagar as luzes, deixar o som fluir o mais alto possível e torcer
para que seja suficiente para ensurdecer os próprios pensamentos.
Cercada de
tantos corações de vidro, o choro foi extinto, as lágrimas há muito não são denunciadas,
ninguém ousa tentar e a visão tão racional é condecorada com pompas e fogos de artifício...
Mas meu
coração de poeta não foi feito para honras ao mérito, medalhas na estante,
flores coloridas ou aplausos da multidão... Meu coração é daquele que se
aperta, que solta e aperta de novo, é do tipo que palpita, que corre e se agita,
que se angustia e se alegra, é daquele que sente dor e vive em busca de saber o
que é o verdadeiro amor...
Esqueceram-se
do meu coração de vidro, agora sou fugitiva da polícia... Quando for pega,
verão meu coração pulsar o sangue quente, correndo doce, espalhando-se pelo
chão e esvaindo-se como a solidão.
“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de
carne, e sangra todo dia.” (José Saramago).
De todo infeliz é aquele que tem o coração de vidro, que não sofre, e se sofrer quebra, acaba! Mais vale sentir a dor, pois assim também se conhece o oposto. Descobre-se a alegria, o amor. Coração, como símbolo e não como órgão. Sem coração não se faz, ao menos, um caráter.
ResponderExcluir"Pena é não haver um manicômio para corações, que para cabeças há muitos."
ResponderExcluir(Florbela Espanca)